domingo, 18 de janeiro de 2015

Concepção epistemológica e prática pedagógica




Por que afirmamos que a concepção epistemológica do professor (Becker, 2011; 2010) faz diferença em sua concepção pedagógica e em sua prática didática?


Está fora de moda ler obras como A didática magna, de Comenius; O Emílio, de Rousseau; Sobre a pedagogia, de Kant. O que se dirá para quem decide ler Platão, garimpando suas ideias sobre educação, como o faz magistralmente o filósofo Jayme Paviani (2008); ou para quem pretende ler a Paidéia, de Werner Jaeger? Até Piaget e Freire foram classificados como fósseis por um palestrante estrangeiro que, em palestra ulterior, afirmou que um dos filhos de Piaget havia se suicidado, tão horrível era seu pai... Não é raro, ouvir-se de alunos de Pedagogia, de outras licenciaturas e, até, de mestrado e doutorado, que algum dentre seus professores excluiu, com ostensivo menosprezo, esses dois autores de suas indicações bibliográficas. É impressionante como o patrulhamento ideológico, fundado em critérios no mínimo questionáveis para não falar ridículos, corre solto pela academia. A crítica, científica e filosófica, encontra-se tão debilitada ou omissa que não consegue mais distinguir um texto acadêmico de um texto de autoajuda. Recentemente, um mega-congresso educacional escalou, para a palestra de abertura do evento, um sucesso editorial de autoajuda; o livro mais promovido no evento era de outro sucesso editorial desse gênero de literatura. A educação parece entregue às traças...

Talvez nunca se tivesse tido consciência tão aguda e de tamanha extensão de que a educação brasileira precisa de mudanças profundas e urgentes; tanto a educação escolar, quanto a não escolar (familiar, empresarial, de trânsito, de convivência pública, ética, etc.). Interessa-nos, aqui, a educação escolar. Em especial, a formação dos professores.


Estudei, durante anos, a epistemologia subjacente ao trabalho docente ou “Epistemologia do professor” (2009). Dentro da mesma ótica, dediquei ainda mais tempo ao estudo da “Epistemologia do professor de Matemática” (2010). O que encontrei ali?


Partamos do seguinte problema: “Por que afirmamos que a concepção epistemológica do professor causa impacto em sua concepção pedagógica e em sua prática didática?”


Perguntei aos professores, nessas pesquisas, sobre: sua concepção de conhecimento e de aprendizagem, as condições prévias do conhecimento-capacidade, a capacidade cognitiva de crianças pequenas ou recém-nascidas, a influência do meio social, o papel de professor e de aluno, a importância da história do conhecimento que ele ensina, a diferença entre ensinar Matemática por algoritmo ou por resolução de problemas, o significado da Matemática escolar para o aluno, a adequação do currículo escolar, etc. As respostas não deixam de surpreender.


Sobre o papel de professor, um docente afirma: "O professor deve organizar o conteúdo, esmiuçar, tornar agradável e estimulante o conteúdo. O aluno deve... pôr o conteúdo nos buracos que ele tem na cabeça...". Sobre o papel de aluno, diz outro docente: "O aluno é como a anilina no papel em branco, que a gente tinge, passa para o papel; o aluno assimila, elabora, coloca com as próprias palavras”, aquilo que o professor ensinou. Perguntado sobre a formação dos conhecimentos, diz um professor: O conhecimento "se dá à medida que as coisas vão aparecendo e sendo introduzidas por nós nas crianças...". Sobre aprendizagem, um professor universitário de História afirma: “Ninguém pode transmitir. É o aluno que aprende. [...] Então temos, através disso tudo, uma vocação: o ensinar, o transmitir. Assim como se tem uma vocação para a música e o desenho tem para ensinar, também. Nem todo mundo tem isso. [...]. Eu acho que é um tipo de dom que as pessoas têm”. A professora de Ensino Médio, perguntada sobre a capacidade de aprendizagem de crianças pequenas ou recém nascidas, respondeu: “Olha, eu nunca pensei nisso, eu acho que isso aí é uma coisa inata. [...] Depende da criança, às vezes têm crianças superdotadas, tem uma facilidade bárbara, já nascem com aquele talento, mas não são todas”. Perguntado sobre os papéis de professor e de aluno, na sala de aula, afirma enfaticamente este professor: “O professor ensina e o aluno aprende. Qual é a tua dúvida?”.

Todas essas manifestações de docentes mal disfarçam suas concepções epistemológicas pré-científicas ou de senso comum. O professor pode ensinar conteúdos recentes de Física e interpretar os processos de aprendizagem desses conteúdos, por seus alunos, de acordo com concepções epistemológicas do mais raso senso comum, como aquela que acredita que se aprende por estimulação; ele acredita que basta ser estimulado para aprender algo, pois o conhecimento é cópia da realidade. Do mesmo modo, o professor de Matemática pode ensinar cálculo diferencial e integral, ou geometria dos fractais, ao mesmo tempo em que compreende que as ideias matemáticas sempre existiram ou são inatas; isto é, seu aluno, quando recém-nascido, já possuía essas ideias; se não as possuía, jamais poderia aprendê-las. Ele não sabe que o matemático constrói as ideias matemáticas; acredita que ele apenas as descobre, pois elas sempre existiram; revelam assim um inatismo quase religioso.

O mais comum é essas duas concepções epistemológicas, opostas entre si, tributárias do senso comum, virem amalgamadas pelos docentes. É assim que elas se refletem no ensino. Um docente não é apenas empirista, enquanto outro é apriorista. O mesmo docente manifesta seu compromisso com ambas epistemologias.

O bom professor, depois de algum tempo, percebe que alguns alunos se destacam, enquanto outros não dão conta dos conteúdos mínimos que ensinou. Afirma, então, referindo-se ao primeiro grupo: este aluno nasceu inteligente. Donde tirou essa conclusão? De sua concepção epistemológica, pois ele não tem know-how para fazer tal diagnóstico. Que parte do genoma humano traz a inteligência pronta? O que sabe ele a respeito? Como explicar que alunos que nada aprendem, quando integrados num ambiente impregnado de uma pedagogia ativa, passam a aprender melhor que a média? E alunos individualmente “geniais”, quando em grupo, enfrentando um problema prático, mostram-se medianos ou, até, abaixo da média. Ou alunos que respondem com alta performance quando se trata de reproduzir conteúdos de memória, não conseguem passar da mediania quando se exigem deles raciocínios mais complexos.

O bom professor prepara bem sua aula, faz desenhos no quadro, demonstra o cálculo passo a passo, usa imagens coloridas, datashow; lousa eletrônica, então, é um sonho... No entanto, só alguns alunos aprendem. Ele explica: eles aprenderam porque eu os estimulei. Alguns professores mostram-se convencidos de que a estimulação com recursos tecnológicos sofisticados leva o ensino ao topo. Mesmo assim há alunos que não aprenderam? É, então, que o pesquisador é surpreendido com as seguintes justificativas: isso acontece porque são preguiçosos, indolentes, não querem nada com nada, são pobres, moram na favela, vêm de famílias desestruturadas, estão bloqueados, não aprenderam os pré-requisitos, etc., etc.. Mas, eles não foram estimulados tanto quanto os outros? Então, por que não aprenderam? Será que o docente pelo menos suspeita que a estimulação, embora importante, pode não ser suficiente? Como explicar que alunos estimulados que não aprendem, quando integrados num ambiente de pedagogia ativa passam a aprender melhor do que a média? O professor, preso a epistemologias do senso comum, não consegue explicar o que acontece. Apela, então, para explicações preconceituosas que culpam o aluno pelo seu fracasso.

Piaget (1972) nos desvenda este “mistério”.

Mas este fator [transmissão educacional] é insuficiente porque a criança pode receber valiosa informação via linguagem, ou via educação dirigida por um adulto, apenas se estiver num estado que possa compreender esta informação. Isto é, para receber a informação ela deve ter uma estrutura que a capacite a assimilar essa informação. Essa é a razão por que não se pode ensinar alta matemática a uma criança de cinco anos. Ela não tem a estrutura que a capacite a entender (p.4).

Alunos não aprendem por muitos motivos. Muitos não aprendem porque não têm estrutura para assimilar o que lhes é ensinado. Eles são muito mais numerosos do que se suspeita. Quando um aluno diz: “Professor, não estou entendendo nada!”, será que a queixa deve-se apenas à falta de pré-requisito?

No mesmo texto, Piaget (1972), criticando a teoria estímulo-resposta afirma que o mínimo que se pode fazer com esse esquema é introduzir nele a assimilação. Assim, o esquema E – R deverá ser representado desta forma: E [A] R. Traduzindo, se o estímulo (E) não for assimilado (A) pelo sujeito, não haverá resposta (R); ou, se a assimilação for precária, a resposta será precária, etc.. Para assimilar o estímulo o sujeito precisa ter construído estrutura capaz de assimilá-lo. É essa estrutura que produz – constrói! – a resposta. É neste sentido que a resposta, de certa forma, precede o estímulo; a resposta sinaliza que a estrutura se transformou desafiada pelo estímulo; a resposta é produto da atividade da estrutura, reconstruindo-se, desafiada pelo estímulo. Sem estrutura não há resposta! E a estrutura é construída, no plano do desenvolvimento, pela ação do sujeito desafiada pelo meio.

Não tenho mais dúvidas de que um dos maiores desafios da escola, e da docência em particular, é o de compreender que o desenvolvimento abre caminhos para a aprendizagem. Sem desenvolvimento não haverá aprendizagens de conteúdos novos, mais complexos. O desenvolvimento acontece sempre que o sujeito responde a algum desafio que não havia respondido até hoje – pode ser relativo a um conteúdo novo, ou a aspectos mais complexos do mesmo conteúdo. Exagerando um pouco, para melhor compreender, podemos dizer que existe o processo de desenvolvimento realizado pela ação do sujeito sobre o meio (assimilação), físico ou social, e sobre si próprio (acomodação). A aprendizagem não passa de um epifenômeno do desenvolvimento. “[...] considero que o desenvolvimento explica a aprendizagem” (Idem, p.1), e não o contrário. “Na realidade, o desenvolvimento é o processo essencial e cada elemento da aprendizagem ocorre como uma função do desenvolvimento total, em lugar de ser um elemento que explica o desenvolvimento” (Id., p. 1). Ou, “a aprendizagem é função de instrumentos lógicos à disposição do indivíduo” (Piaget, 1959, p. 94).

Isso em nada diminui a importância do processo de aprendizagem; mas, como um processo secundário; o desenvolvimento é, portanto, o processo principal.

A aprendizagem é possível apenas quando há uma assimilação ativa. É essa atividade de parte do sujeito que me parece omitida no esquema estímulo-resposta. A formulação que proponho coloca ênfase na idéia da auto-regulação, na assimilação (Piaget, 1972, p.7).

A atividade assimiladora do sujeito leva a acomodações, isto é, a melhoras na estrutura cognitiva. Com essas melhoras, o sujeito poderá assimilar o que antes era impossível. O desenvolvimento abre caminhos para aprendizagens de conteúdos mais complexos ou conteúdos novos. É por isso que a aprendizagem não deve ser reduzida, minimizando a atividade do sujeito; deve antes potencializar essa atividade; só assim ela chegará a atingir os mecanismos do desenvolvimento.

Toda ênfase é colocada na atividade do próprio sujeito, e penso que sem essa atividade não há possível didática ou pedagogia que transforme significativamente o sujeito (Piaget, 1972, p.7).

A grande tarefa da escola, da docência em particular, é propiciar aprendizagens ativas que sejam expressão do desenvolvimento atual e que o desafiem até o limite de suas possibilidades. Com isso, o objetivo da aprendizagem escolar deixará de ser a acumulação de conteúdos, por estimulação e repetição, fundado na crença de um genoma pré-formatado, para transformar-se na busca do aumento da capacidade de aprender. Os conteúdos não deixarão de ser importantes, mas sua importância será relativizada em função de um objetivo maior: o aumento da capacidade de aprender que se realizará pelo desenvolvimento.

Essa tarefa não poderá ser realizada, de forma duradoura, sem ser compreendida pela docência e pela gestão escolar. Para ser compreendida é preciso uma crítica radical das epistemologias do senso comum, na direção de um construtivismo epistemológico, fundado na autorregulação ou na equilibração, isto é, numa concepção de desenvolvimento – não apenas na transmissão social fundada na crença de uma aprendizagem por repetição visando a acumulação de conteúdos.


Referências bibliográficas

BECKER, Fernando. Epistemologia do professor; o cotidiano da escola. 14ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

BECKER, Fernando. Epistemologia do professor de matemática. Petrópolis: Vozes, 2012.

PIAGET, Jean. Desenvolvimento e aprendizagem. In: LAVATELLY, C. S. e STENDLER, F. Reading in child behavior and development. New York: Hartcourt Brace Janovich, 1972. (Cf. tradução in: http://pt.scribd.com/doc/72917700/Piaget-Desenvolvimento-e-Aprendizagem-Trad-Slomp)

PIAGET, Jean & GRÉCO, Pierre. Aprendizagem e conhecimento. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974.

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