Geraldo Botura do Carmo[1]
"Esta
maldita tarefa de aprovar ou
reprovar aluno foi imposta há séculos
aos professores, de tal forma que, num
primeiro momento, torna-se muito difícil
nos livrarmos dela, já que se tornou,
para a grande maioria dos docentes,
algo absolutamente natural."
A escola
brasileira se vê pela primeira vez na sua história diante do dilema da
alfabetização e da aprendizagem, uma vez que o novo paradigma da globalização
exige, para que se possa competir com os países do hemisfério Norte, uma
população letrada. E essa escola que até agora tinha como papel principal a
classificação de alunos, determinando aqueles que seriam dirigentes e aqueles
que seriam dirigidos, numa atitude de exclusão; se sente impotente diante da
nova tarefa que lhe é imposta: a de inclusão.
E toda a
estrutura que havia sido montada para a escola de exclusão social, tem que ser
desmontada, para que se possa construir a escola de inclusão social. Para isso
há que se pensar em uma nova estruturação do espaço físico, uma nova
estruturação do currículo, uma nova estruturação do tempo escolar e uma nova
estruturação no campo da formação dos profissionais da educação.
O fim da
avaliação classificatória que teria que ser vista como um avanço, devido a
distorções historicamente acumuladas, vem sendo um campo de equívocos e
discórdias entre os profissionais da educação. Precisamos superar os limites e
as contradições e seguir adiante, acreditando que um outro mundo é possível,
conscientes de que a humanidade pode e deve ser mais feliz. E este outro mundo
precisa contar com uma outra educação, que implica também em uma outra forma de
avaliação escolar, pois a que tivemos até agora tem provocado enormes estragos.
Se não mudarmos de paradigmas, se não descondicionarmos o olhar, torna-se mais
difícil vislumbrar novas possibilidades.
Se por um
lado ouvimos professores defenderem com convicção que a retenção é uma coisa
boa, ou um mal necessário, por outro lado presenciamos os órgãos oficiais
impondo aos professores a obrigação de aprovar os alunos. Imposição essa, sem
nenhum trabalho de sensibilização e capacitação. Essa decisão tem que partir
dos educadores, de pouco adianta acabar formalmente com a lógica
classificatória sem uma consciência de fato.
Partamos do
princípio de que a avaliação tem uma conotação altamente ideológica (muitos
preconceitos enraizados, das formas mais sutis), e tem uma profunda base na
lógica social maior. E que o acesso ao saber é a contribuição específica da
escola na formação da cidadania.
A única
certeza que temos em termos de avaliação é que se faz necessário a proposição
de uma outra forma de avaliação, como prática democrática, de inclusão e
emancipação no sistema educacional brasileiro. Na história da educação do
Brasil, observamos a repetência sendo usada como uma forte arma para exclusão
do acesso ao saber, para a expulsão das escolas, dos pobres e dos negros,
mantendo assim as classes sociais, bem comportadas, sem conflitos aparentes.
Sabemos também "que exclusão no interior da escola não se dá apenas pela
avaliação e sim pelo currículo como um todo (objetivos, conteúdos,
metodologias, formas de relacionamento, etc.). No entanto, além do seu papel
específico na exclusão, a avaliação classificatória acaba influenciando todas
estas outras práticas escolares”.
O problema da avaliação está em sua intencionalidade, na sua lógica
classificatória e excludente, que tem sua raiz fora da escola, tem sua raiz na
lógica seletiva social. A avaliação classificatória é uma questão mais política
que pedagógica. Os professores vêm sendo usados historicamente pelo sistema
para a reprodução das desigualdades sociais. O professor tem que resgatar a
compreensão de que o seu papel fundamental é ensinar, criando condições para a
efetiva aprendizagem e desenvolvimento de todos e não o de medir, julgar,
disciplinar e selecionar. E ficam os professores ao invés de se preocuparem com
a aprendizagem, com o saber, tendo que se preocupar em selecionar os melhores e
domesticá-los para o sistema.
A escola
concebida como espaço de formação da pessoa, do cidadão tem uma outra
configuração. Essa nossa escola já é organizada tendo em vista os que
"vão" e os que "não vão" e ela é destinada para os que
"vão". E a escola continua a transmitir conteúdos, medir, reter,
premiar ou punir o aluno de acordo com o seu desempenho. A questão não tem sido
a de intervir para qualificar, mas a de rotular para excluir.
A organização em seriação do sistema de ensino reforça a idéia de reprovação,
pois cada série é um "estágio". Se o professor tiver receio de que o
aluno não acompanhará o estágio seguinte, este aluno será retido. Falta uma
visão de continuidade do processo de aprendizagem e desenvolvimento do aluno. O
grande problema da avaliação é a sua vinculação a uma lógica social de
exclusão, através dos mecanismos de classificação a que está submetida.
O problema
não é aprovar ou reprovar, mas favorecer a aprendizagem e o desenvolvimento
humano de todos. O que tem que mudar é a forma de avaliar o aluno.
"O grande nó da avaliação escolar está, pois,
nesta lógica classificatória e excludente. É claro que existem outros problemas
na avaliação, seja em termos de conteúdo, forma, relações. Só que de muito
pouco adianta mexer nestes outros aspectos se sua intencionalidade não for
alterada.
Queremos deixar muito claro, logo de partida, o nosso enfoque: estamos a
combater a classificação excludente, e não só a reprovação, uma vez que a mera
aprovação do aluno pode ser tão excludente quanto a reprovação, já que também
não está levando à efetiva apropriação do conhecimento. Precisaria ficar muito
patente que o nosso problema não é (não deve ser) aprovar ou reprovar, mas
favorecer a aprendizagem e o desenvolvimento humano de todos”. (APEOESP)
O professor
vai defender a reprovação dizendo que "não se pode enganar o aluno",
"é preciso manter o nível do ensino", "se precisa fazer alguma
coisa diante do fato do aluno não estar aprendendo", "é preciso
preparar o aluno para a vida", etc.
"A simples defesa do fim da reprovação e, por
conseqüência, a bandeira da mera aprovação/empurração cria um clima de
afrouxamento ético, o que não é, com certeza, bom para o avanço da luta pela
democratização do saber. O professor não pode perder o brio, o senso ético e,
conseqüentemente, a responsabilidade por seus atos”. (APEOESP)
De um lado,
uma concepção autoritária, excludente, mas com longa tradição, e, de outro, a
concepção emergente, de cunho democrático. A avaliação progressiva se apresenta
em oposição à tradicional organização seriada do ensino, pautada na rígida
“distribuição de objetivos e conteúdos” e em “anos letivos”. O que está posto,
no limite, com a idéia de progressão, é a construção da escola sob o
compromisso de incluir os alunos historicamente dela excluídos, sob a alegação
de que não se adaptam às suas regras, rituais e aos conteúdos por ela
legitimados.
O que a
escola tem que fazer e não faz é assumir o compromisso com a aprendizagem
efetiva na continuidade do estudo, e desta forma não teria que interromper
processo algum com reprovações. A reprovação é uma necessidade dentro da
estrutura perversa em que a escola está fundamentada. O ser humano não é para
ser aprovado ou reprovado. Ele tem direito fundamental à existência, à cultura,
ao conhecimento, ao desenvolvimento.
A avaliação não é neutra e nem uma simples atividade técnica no âmbito
pedagógico, ela tem cunho ideológico e vai ter repercussão em várias esferas da
existência. Basta olhar e vermos ao nosso redor a desigualdade social. A escola
é uma das grandes responsáveis, é ela que através de sua estrutura, seja
através de seu currículo explícito, ou oculto, de seus rituais, de seus
silêncios, na hora da avaliação, ou na hora da classificação dos alunos em
turmas A, B ou C, mantém a desigualdade social e todos passam a achar coisa
natural, e fica fácil de ser mantida esta estrutura na sociedade.
O desafio
que se coloca aos profissionais da educação é o de analisar as condições de
possibilidade de práticas alternativas de avaliação.
A avaliação
classificatória ocorre, e sentimos necessidade de recorrer a ela, porque um
conjunto de fatores acaba contribuindo para isto. A estrutura organizativa da
escola não nos deixa ver outra saída que não essa. E enquanto houver a
mentalidade de que existem pessoas de categorias diferentes, a avaliação
classificatória vai permanecer no interior da escola. Mudar a forma da
avaliação é mudar a sociedade. Assumir a idéia de progressão na trajetória
escolar supõe ter como um dos pressupostos da organização do trabalho a
diversidade dos alunos, decorrente de suas características individuais e de
classe social e, portanto, a aceitação de que estes trilham caminhos diversos
de aprendizagem, em ritmos diferentes, que se manifestam em especificidades de
trajetórias escolar e de vida.
A avaliação é uma atividade de acompanhamento e transformação do processo de
ensino-aprendizagem, através da observação, análise, registro, reflexão sobre o
que foi observado e registrado, comunicação dos resultados e tomada de decisão
para atingir os objetivos que ainda não foram alcançados. E para isso
esbarramos com as questões de salas superlotadas, com tempo reduzido, sem
condições reais do professor poder fazer um acompanhamento honesto de seus
alunos, fazendo diagnósticos, analisando a situação, dando retorno ao aluno de
seus limites e seus avanços, e preparando novas atividades que poderão auxiliar
o aluno na superação de seus limites.
E ficamos
discutindo se a organização é ciclo ou seriação (já ouvi até a
classificação de “ciclo-seriação”), se é nota ou conceito, se há retenção ou se
não há retenção. O problema é bem outro. E se conseguirmos resolver a questão
da qualidade não importa que seja ciclo ou seriação, nota ou conceito. E a
forma como o aluno vai ser avaliado tem que partir dos professores, não adianta
vir receita pronta elaborada pelos "iluminados", por mais
"iluminados" que sejam, moradores das altas esferas governamentais.
E uma coisa
tem que nos ficar claro: a avaliação progressiva não pode ser confundida com
"aprovação automática", servindo apenas à regularização do fluxo
escolar, como tem sido usada por muitos governantes para o fim da repetência. É
necessário que sejam garantidas, pelo poder público, condições às escolas para
desencadearem um processo coletivo de reflexão, que apóie intervenções consistentes.
As mudanças que se exigem não são meramente técnicas, mas sim políticas e
ideológicas, impondo o confronto com valores arraigados na cultura escolar.
Para
finalizar, BITTENCOURT (2003) vai fazer uma análise do papel social da escola
no Brasil. A autora afirma que no início somente uma pequena elite entrava para
a escola, mais tarde os que entravam e não eram da elite eram expulsos das
escolas. Esse fato ocorreu até a década de 60 quando a garantia de vagas para
todos nas escolas públicas passou a ser tratada como um problema de política
internacional e a expulsão passou a ser constrangedora para as escolas. O que
aconteceu então? Não havia mais expulsões, ou melhor, a expulsão aparece com o
nome de evasão escolar. E a causa de tanta evasão é a reprovação. O aluno agora
não era mais expulso, mas de tanto ser reprovado, acabava por abandonar a
escola. O poder público, então, em vários Estados da União, decretou o fim da
reprovação. Passou então a ocorrer o seguinte fato:
“As crianças e os jovens estão na escola,
permanecem nela e recebem seus diplomas, mas não sabem o que deveriam saber ao
deixar a escola. Descobriu-se que a escola não ensina, que os alunos não
aprendem, que os professores não sabem, que nossos índices de desempenho estão
entre os piores do mundo”.
A autora vai
dizer que o que mudou foi apenas o registro burocrático: expulsão, evasão,
baixos índices de desempenho escolar. Fica claro, portanto o papel social da
escola até agora: o da exclusão social: selecionar, classificar, distinguir,
hierarquizar. E a escola por si só não consegue produzir a igualdade numa
sociedade desigual, excludente e injusta.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
APEOESP. Progressão Continuada e Avaliação: Para além do desejo de
reprovar e da imposição de aprovar - REVISTA DA EDUCAÇÃO - Nº
16 março/2003
Acessado em
27/04/2003
BITTENCOURT[1], Agueda Bernardete: A
escola sozinha não produz igualdade. Especial para a Folha de
S.Paulo 29/07/2003.
SOUZA[3],
Sandra M. Zákia L. Progressão Escolar: implicações para a organização do
trabalho escolar. APEOESP - REVISTA DA EDUCAÇÃO - Nº 16
março/2003
Acessado em 27/04/2003
[1] Doutora em educação,
diretora da Faculdade de Educação da Unicamp e professora da graduação e da
pós. Coordena a equipe brasileira da Rede de Pesquisadores sobre Educação,
Cultura e Política na América Latina —além do Brasil, a rede reúne
pesquisadores do México, da Argentina e da Colômbia.
BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
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nov. 2002.
[1] Pedagogo com habilitação em
Administração Escolar de 1. e 2. graus e Magistério das Matérias Pedagógicas de
2. grau. Professor facilitador em Informática Aplicada à Educação pelo PROINFO
- MEC - NTE-MG2
[2] Associação dos Professores
do Ensino Oficial de São Paulo
[3] Professora Doutora da Faculdade de Educação FE/USP.