Por Paulo Buss*
Numa viagem de cinco dias a Bancoc, capital da Tailândia, para participar da 6ª Conferência Mundial sobre Promoção da Saúde, pude verificar nitidamente, em campo, como dizem os pesquisadores, as conseqüências nocivas da globalização e da pobreza sobre a saúde, tema, aliás, da conferência que fiz naquele evento.
Uma delas foi o imenso risco de uma epidemia global de gripe aviária oriunda do sudeste da Ásia. A Tailândia e a antiga Indochina Francesa (Vietnã, Laos e Camboja), além da China, Indonésia e outros pequenos países continentais e insulares, são cenários perfeitos para a difusão do vírus H5 N1 de aves para humanos e destes entre si, como, aliás, já vem ocorrendo com pequeno grau de intensidade, nos últimos dois anos.
A produção de frangos, patos e outras aves, assim como porcos e certos animais menos conhecidos entre nós, ocorre em larga escala e em péssimas condições sanitárias. O convívio íntimo entre criadores e animais, o abate dos mesmos sem condições sanitárias adequadas, a desproteção dos trabalhadores desta indústria improvisada, a alta concentração populacional em cidades como Bancoc, o imenso número de pessoas que comem nas ruas, feiras e em precárias barracas de mercado sem qualquer higiene, tudo isto resultante da pobreza extrema e da concentração de renda, estão criando condições propícias a uma epidemia de proporções alarmantes, a rigor não só de gripe aviária, como da Srag e outras zoonoses.
Meu retorno ao Brasil ocorreu em cerca de 30 horas, passando por um aeroporto da Europa no qual fiquei por três a quatro horas. Ora, se eu tivesse sido contaminado pelo vírus da gripe estaria ainda assintomático ou com sintomas comuns da gripe, mas teria contaminado pelo menos os passageiros do avião que estavam ao meu redor (digamos 15 a 20 pessoas), algumas centenas no aeroporto europeu e poderia contaminar mais gente no Brasil. É assim que as facilidades das viagens internacionais, característica significativa da globalização, ajudam a difundir as doenças transmissíveis no século 21.
Entretanto, para meu alívio, em paralelo à Conferência, uma reunião de alto nível que reuniu o diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde) e os ministros da Saúde e técnicos de sete países da região (Tailândia, Japão, Laos, Vietnã, Camboja, Malásia e Burma) discutiu e aprovou a formação de estoque de um dos poucos medicamentos com ação contra o vírus da gripe. A intenção é que, caso surja a doença em um desses países, a autoridade sanitária possa recorrer a um bloqueio da área em que os casos ocorreram, utilizando os produtos estocados neste "banco de medicamentos". O jornal do dia seguinte anunciou o fato em manchete de primeira página.
Ocorre que neste mundo globalizado algumas coisas são muito privadas. Apenas um grande laboratório internacional produz esta droga, que custa muito caro. Por sua vez, ancorado nas regras da propriedade intelectual e industrial (Acordo Trips da Organização Mundial do Comércio) ninguém pode produzi-la, a não ser que receba uma licença voluntária da companhia ou quebre a patente. Se for um destes países pobres que estão ameaçados pela influenza vai ser retaliado à morte nas suas exportações agrícolas, por exemplo. Assim, no mundo globalizado a ameaça é mundial, embora a defesa mais eficaz esteja em mãos privadas e fora do alcance de nós, pobres humanos comuns ameaçados. Isto o jornal do dia seguinte não anunciou.
Mas os poucos dias na Ásia me mostraram muita outras características nocivas da globalização. Um dos jornais mais importantes da Tailândia anunciou que a Noruega, a Islândia e outros países da União Européia tinham suspendido a importação de verduras tailandesas por estarem contaminadas com salmonela e E. coli, bactérias causadoras de diarréias, mais graves em crianças e idosos. É claro que no jornal do dia seguinte o ministro da Agricultura da Tailândia anunciava inspeções sanitárias mais rigorosas sobre tais produtos e sua produção. Nada de novidade aí, pois diariamente milhões de toneladas de alimentos in natura e industrializados são comercializados e transportados ao redor do mundo e muitos deles estão contaminados com micro-organismos conhecidos - e outros, nem tanto -, produzindo doenças nos seus consumidores. A saúde pública dos países produtores e dos importadores é fundamental para barrar esta fonte importante de doenças transmissíveis no mundo globalizado.
Outra característica da globalização é o turismo e a exploração sexual de crianças e jovens pobres, de ambos os sexos, de países também pobres de regiões como Sudeste Asiático, África, América Latina e Caribe. Em março de 2005, a Comissão Social e Econômica das Nações Unidas para a Ásia e o Pacífico (Unescap), que tem sede em Bancoc, emitia um informe muito bem documentado de diagnóstico e enfrentamento do problema. As ruas dos bairros, em Bancoc, são um impressionante retrato vivo sobre o assunto. Milhares de meninas e meninos adolescentes se oferecem nas ruas ou dançam, uniformizados e numerados, nos palcos de centenas de bares, confirmando a alcunha de Cidade dos anjos que Bancoc já tinha historicamente. Mas atenção: o Brasil não é muito diferente, o turismo sexual é uma das nossas chagas mais visíveis, contra a qual numerosas iniciativas do poder público, de ONGs e da sociedade como um todo têm procurado atuar.
Não se está levantando aqui nada contra o turismo e o lazer, muito menos contra a Tailândia, um país fascinante e belíssimo, com um dos povos mais hospitaleiros que já encontrei. Queremos apenas alertar a respeito das conseqüências da globalização sobre a saúde, seja diretamente ou por meio da pobreza crescente e da ampliação das desigualdades que vêm impondo ao mundo.
Uma delas foi o imenso risco de uma epidemia global de gripe aviária oriunda do sudeste da Ásia. A Tailândia e a antiga Indochina Francesa (Vietnã, Laos e Camboja), além da China, Indonésia e outros pequenos países continentais e insulares, são cenários perfeitos para a difusão do vírus H5 N1 de aves para humanos e destes entre si, como, aliás, já vem ocorrendo com pequeno grau de intensidade, nos últimos dois anos.
A produção de frangos, patos e outras aves, assim como porcos e certos animais menos conhecidos entre nós, ocorre em larga escala e em péssimas condições sanitárias. O convívio íntimo entre criadores e animais, o abate dos mesmos sem condições sanitárias adequadas, a desproteção dos trabalhadores desta indústria improvisada, a alta concentração populacional em cidades como Bancoc, o imenso número de pessoas que comem nas ruas, feiras e em precárias barracas de mercado sem qualquer higiene, tudo isto resultante da pobreza extrema e da concentração de renda, estão criando condições propícias a uma epidemia de proporções alarmantes, a rigor não só de gripe aviária, como da Srag e outras zoonoses.
Meu retorno ao Brasil ocorreu em cerca de 30 horas, passando por um aeroporto da Europa no qual fiquei por três a quatro horas. Ora, se eu tivesse sido contaminado pelo vírus da gripe estaria ainda assintomático ou com sintomas comuns da gripe, mas teria contaminado pelo menos os passageiros do avião que estavam ao meu redor (digamos 15 a 20 pessoas), algumas centenas no aeroporto europeu e poderia contaminar mais gente no Brasil. É assim que as facilidades das viagens internacionais, característica significativa da globalização, ajudam a difundir as doenças transmissíveis no século 21.
Entretanto, para meu alívio, em paralelo à Conferência, uma reunião de alto nível que reuniu o diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde) e os ministros da Saúde e técnicos de sete países da região (Tailândia, Japão, Laos, Vietnã, Camboja, Malásia e Burma) discutiu e aprovou a formação de estoque de um dos poucos medicamentos com ação contra o vírus da gripe. A intenção é que, caso surja a doença em um desses países, a autoridade sanitária possa recorrer a um bloqueio da área em que os casos ocorreram, utilizando os produtos estocados neste "banco de medicamentos". O jornal do dia seguinte anunciou o fato em manchete de primeira página.
Ocorre que neste mundo globalizado algumas coisas são muito privadas. Apenas um grande laboratório internacional produz esta droga, que custa muito caro. Por sua vez, ancorado nas regras da propriedade intelectual e industrial (Acordo Trips da Organização Mundial do Comércio) ninguém pode produzi-la, a não ser que receba uma licença voluntária da companhia ou quebre a patente. Se for um destes países pobres que estão ameaçados pela influenza vai ser retaliado à morte nas suas exportações agrícolas, por exemplo. Assim, no mundo globalizado a ameaça é mundial, embora a defesa mais eficaz esteja em mãos privadas e fora do alcance de nós, pobres humanos comuns ameaçados. Isto o jornal do dia seguinte não anunciou.
Mas os poucos dias na Ásia me mostraram muita outras características nocivas da globalização. Um dos jornais mais importantes da Tailândia anunciou que a Noruega, a Islândia e outros países da União Européia tinham suspendido a importação de verduras tailandesas por estarem contaminadas com salmonela e E. coli, bactérias causadoras de diarréias, mais graves em crianças e idosos. É claro que no jornal do dia seguinte o ministro da Agricultura da Tailândia anunciava inspeções sanitárias mais rigorosas sobre tais produtos e sua produção. Nada de novidade aí, pois diariamente milhões de toneladas de alimentos in natura e industrializados são comercializados e transportados ao redor do mundo e muitos deles estão contaminados com micro-organismos conhecidos - e outros, nem tanto -, produzindo doenças nos seus consumidores. A saúde pública dos países produtores e dos importadores é fundamental para barrar esta fonte importante de doenças transmissíveis no mundo globalizado.
Outra característica da globalização é o turismo e a exploração sexual de crianças e jovens pobres, de ambos os sexos, de países também pobres de regiões como Sudeste Asiático, África, América Latina e Caribe. Em março de 2005, a Comissão Social e Econômica das Nações Unidas para a Ásia e o Pacífico (Unescap), que tem sede em Bancoc, emitia um informe muito bem documentado de diagnóstico e enfrentamento do problema. As ruas dos bairros, em Bancoc, são um impressionante retrato vivo sobre o assunto. Milhares de meninas e meninos adolescentes se oferecem nas ruas ou dançam, uniformizados e numerados, nos palcos de centenas de bares, confirmando a alcunha de Cidade dos anjos que Bancoc já tinha historicamente. Mas atenção: o Brasil não é muito diferente, o turismo sexual é uma das nossas chagas mais visíveis, contra a qual numerosas iniciativas do poder público, de ONGs e da sociedade como um todo têm procurado atuar.
Não se está levantando aqui nada contra o turismo e o lazer, muito menos contra a Tailândia, um país fascinante e belíssimo, com um dos povos mais hospitaleiros que já encontrei. Queremos apenas alertar a respeito das conseqüências da globalização sobre a saúde, seja diretamente ou por meio da pobreza crescente e da ampliação das desigualdades que vêm impondo ao mundo.
* Paulo Buss é coordenador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz e membro-titular da Academia Nacional de Medicina
Fonte: Agência Fiocruz de Notícias
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